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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

História para 23.08.2012


A SOMBRA DO MARCOLINO


O senhor Marcolino já tinha uma certa idade. Outros
diriam que o senhor Marcolino era um velho, mas se ele,
um dia, vier a ler esta história, talvez não goste de assim ser
tratado. Os velhos – perdão!, as pessoas de idade – têm
destes melindres. Compreensíveis.
Pois o senhor Marcolino, idoso, reformado, sozinho,
resolvera-se a pôr em prática um plano que há muito vinha
congeminando.
Era assim: aos primeiros arrepios de Novembro,  o
senhor Marcolino metia-se na cama. Bem quentinho. Só
voltava a levantar-se lá para meados de Março, quando
sentia que dois cobertores já eram peso de mais.

Só se levantava em Março é uma maneira de dizer. Claro
que, sempre que tinha necessidade saía da cama e não
descurava os seus hábitos de higiene. Também não se
esquecia de comer, mas fora de horas, quando lhe dava a
fome e pouco de cada vez. Uma fruta, uma sopinha ou uns
petisquitos, que armazenara para o Inverno na arca
frigorífica. Não se tratava mal.
– Se há bichos que hibernam, porque não hei-de eu
hibernar também, que tanto trabalhei de Verão e de
Inverno, enquanto tinha de trabalhar. São uma espécie de
férias por junto, já que só de raro em raro, dantes, eu as
tirava.
Isto explicava ele a si próprio ou à sua própria sombra,
pois não tinha mais ninguém com quem conversar. Nem se
ralava.

Mas ralava-se a sombra, a quem o senhor Marcolino
confidenciava sempre os seus pensamentos. Ora, uma vez,
a sombra pôs-se em pé diante dele e, muito enxofrada, vá
de dizer-lhe:
– És um urso, um bicho do mato. Quase meio ano aqui
escondido em casa, tem algum jeito? Que não queiras pôr
o nariz na rua é lá contigo, mas que me obrigues a fazer-te
companhia todo este tempo é uma escravidão. Uma
escravidão intolerável!
– Lá fora está frio – queixava-se o senhor Marcolino.
– A mim bem me importa – repontava a sombra. – Eu
procuro sempre o lado do sol. Gosto de apanhar ar, de
espairecer, até de passear à noite, à luz dos candeeiros.
– Então vai passear e deixa-me em paz – arreliou-se o
senhor Marcolino, farto daquela sombra pespontona.

Nem foi preciso dizer-lhe segunda vez. A sombra
descolou-se do senhor Marcolino e escapuliu-se por
debaixo da porta. Um solzinho de Inverno, mesmo
tentador, chamava-a, da rua...
Quando veio o mês de Março, um Março
particularmente solarengo, o senhor Marcolino saiu de
casa. Mas com um certo desconforto, há que dizê-lo. Sem
a sombra à sua beira, sentia-se como se não estivesse
completamente vestido.
Além disso, podiam reparar. Um homem sem sombra é
coisa nunca vista e o senhor Marcolino não queria passar
por raridade.
Viveu aquela Primevera e os meses de Verão num grande
enervamento. E arrependido de ter sido brusco para com a
sua sombra, a sua única sombra, que sempre  o
acompanhara fielmente, a vida toda.
Pôs um anúncio, no jornal:


SOMBRA VOLTA
Se me perdoares,
também estás perdoada
Mas sem grande esperança... O Verão a acabar e ele sem
sombra. Pôs-se a andar ao acaso por largos e praças batidas
pelo sol. Palmilhou ruas e estradas rasgadas pelo sol. Da
sua sombra nem sombra.
Sentiu-se muito só. Estava ele, sentado numa duna da
praia, a olhar para o mar, quando uma voz lhe interrompeu
os pensamentos tristes:
– Olá, Marcolino. Afinal, velho urso, também gostas de
apanhar sol.

Era ela, a sua querida sombra, alargando-se e ondulando
pela areia, à luz do sol pôr. Foi uma festa o encontro.
Marcolino prometeu-lhe que, nos dias de Inverno,
sempre que despontasse o sol, havia de trazê-la à rua,  a
passear. A sombra, por seu turno, prometeu-lhe que nunca
mais o abandonaria. E, meigamente, confidenciou-lhe que,
enquanto estivera afastada, sentira saudades do seu velho
urso:
– Uma sombra sozinha, a roçar-se pelas paredes,  a
escorregar pelos tapumes, não tem jeito, não faz sentido.
Nunca mais se separaram e viveram sempre muito
felizes.


FIM







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