Mensagem de Meijinhos

widgeo.net
Aqui pode ouvir a Rádio Luso

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

História para 27.08.2012


O RATO O FUGITIVO


Era um fugitivo. A coberto da noite, escapara-se da
prisão, uma torre alta, rodeada por um muro mais alto
ainda, e correra descalço, sobre cascalho e pedras soltas
que não serviam de caminho senão a cabras de cascos
duros.
Descia a montanha, coroada pela tal prisão. Olhando
para trás, deixara de ver a silhueta assustadora das
muralhas, tão escuras como a noite, o que era bom sinal.
Sinal de que se distanciava cada vez mais dos soldados,
que o perseguiriam, quando na manhã seguinte dessem
com a cela vazia e uma corda pendurada das grades
serradas.
O pior era depois. Os soldados montariam em cavalos,
que galopariam desenfreadamente até apanhá-lo. Pois era.

Mas aquele bocadinho de liberdade já ninguém lhe tirava.
A respiração da noite, o cantar trémulo dos grilos, o faiscar
dos pirilampos, o balido dos cabritos nos cortelhos e o céu
imenso, coalhado de estrelas, valiam tudo, todos os riscos
e até a desilusão de ser de novo feito prisioneiro  e
reconduzido à cela das suas angústias e revolta.
Sim, porque o homem estava preso injustamente.
Invejas, intrigas tinham posto o rei do mal com ele, a ponto
de lhe dar de morada, para o resto da vida, a torre, de que
o muro cinzento à volta retirava toda a vista do mundo.
Naquele tempo, rei que pusesse a mão sobre um dos pratos
da balança da justiça valia mais do que todos os tribunais
juntos.
Levantava-se a primeira claridade da madrugada.  O
fugitivo que descera a montanha aos tombos, de pés  a
sangrar, chegara à planície. E agora?
Estava na estrada de areia. Ah, tivesse ele um cavalo
que, seguramente, se escaparia dos seus perseguidores.

Mas onde descobri-lo? E com que dinheiro comprá-lo, se
tinha os bolsos em farrapos como o resto da roupa que o
cobria? Só Deus ou um anjo por ele podiam salvá-lo.
Numa curva da estrada que a luz do céu, a inundar-se de
lilás, desenhava como a indecisa aguarela de uma nuvem,
o homem viu uma vedação e, atrás da vedação, cavalos a
pastar. Eram brancos, de longas crinas.
Para lá dos cavalos serenos, um ferrador, num telheiro,
ateava o forno, de fole em punho. Apesar do fugitivo o ver
de longe, percebeu-lhe, por trás das barbas tão brancas
como as crinas dos cavalos, um sorriso feliz de quem vai
começar o dia com gosto, até, talvez, com uma boa acção...

– Quer um cavalo para a viagem? – perguntou o velho
das barbas brancas ao homem que muito penara já na
prisão.
– Não tenho com que pagar-lhe – respondeu o pobre
esfarrapado, numa voz de queixume.
– Paga depois – disse-lhe o ferrador, sorrindo, e fez um
gesto de desimportamento, um gesto largo, tão rasgado e
generoso que abrangia o espaço em redor e tudo o mais que
a vista alcançava até ao horizonte ou à transparência azul
do céu, para lá da finitude do tempo.
Depois acrescentou:
– Vou ferrar-lhe um destes cavalos, mas de um modo que
eu cá sei...
Era um homem de mistérios. O fugitivo acolheu-se aos
seus desígnios porque sentiu, no aperto do seu coração, que
mais ninguém senão aquele homem de gestos suaves podia
salvá-lo.

A manhã abria-se, empolgante. Lá, na prisão, já teriam
dado pela fuga, já os soldados lançariam o alarme, já se
aprestavam para persegui-lo.
O velho das barbas brancas ferrou um cavalo. O fugitivo
montou-o. Ia para agradecer, mas o velho interrompeu-lhe
as palavras e mandou-o seguir. Depois, ficou, à beira da
vedação, a ver o cavalo fogoso a afastar-se, numa nuvem
de pó.
Inclinou-se para o chão que o cavalo tinha pisado. Na
areia, as patas ferradas do cavalo imprimiam-se como se o
cavalo e o cavaleiro tivessem seguido o caminho oposto.
Ele, ferrador experiente e avisado, tinha pregado as
ferraduras ao contrário.

Quando o tropel dos perseguidores desceu à estrada  e
consultou as pegadas do cavalo fugitivo foi iludido pelo
sentido que indicavam as ferraduras.
– Foi por ali – apontou o capitão dos guardas.
Mas ele tinha ido por acolá. Nunca mais o apanharam.
Também o ferrador desapareceu da paisagem. Nem
cavalos nem vedação nem forno. Nada. Só árvores, mato e
o céu ao fundo.


FIM







Sem comentários:

Enviar um comentário