Ensalmos, a arte de sarar maleitas em Monte Córdova
Quando
a fé no sobrenatural e no misticismo " anda " à solta, torna-se difícil
traçar a fronteira entre a religião e a superstição, porque quem acode
nas aflições é o curandeiro ou mulher de virtude, com o seu extenso receituário caseiro, à mistura com gesticulações incompreensíveis e rezas em louvor a Deus e à Virgem Maria.
Em termos práticos estamos perante medicina popular,
que é feita de rezas, de práticas e ritos. O curandeiro ou mulher de
virtude dispõe de variadíssimos meios, desde a faca para " cortar o ar
", o raminho de plantas para fazer o chá ou benzer o padecente, o "
poder" das figas, o fogo, o carvão, o azeite, a água, o sal, barbas de
milho, folhas de aipo, de silva, de sabugueiro, o unto de porco, etc,
etc.
Nesta
encenação, o padecente aceita que o curandeiro ou mulher de virtude
recebeu do Senhor o dom de sarar maleitas... porque quase todas as
práticas da medicina popular são acompanhadas com rezas de cariz Cristão
e que invariavelmente começam e terminam com o sinal da cruz ao serem
agitados os raminhos de ervas bentas.
É um nunca mais acabar de soluções para sarar ou talhar o farfalho, a
zipela (erisípela), o zipelão, a rana, o fogo lobo, a dada, o pé
aberto, a espinhela caída, o bicho, o bichoco; esconjuros para todos os
tormentos, maneiras de cortar o ar, maus olhados, etc, etc.
O
ensalmo, na sabedoria popular, é um esconjuro a ares e males à sombra
da religião, Por isso, a doutrina cristã condena as benzeduras ou
ensalmos, assistindo-lhe o direito de o fazer dada a ausência de
fronteira entre religião e crendice: logo, surge a quebra de fé e de
temor a Deus.
A
medicina científica, dita oficial, também combate essa prática com o
argumento de que, o receituário de unguentos e mezinhas pode ser prejudicial à saúde das pessoas que procuram o alívio para os seus males...
Qualquer
prática de medicina não convencional é classificada de prática ilegal
de medicina, mesmo que, a " receita" seja água de arroz para a soltura,
ou folhas de sabugueiro untadas em azeite, para talhar o zipelão.
Não rotulando tudo de superstição ou atraso, importa mostrar onde está a tradição, os valores culturais que tal ciência popular tão antiga nos legou até hoje. É que, a medicina popular é, também, a memória de um povo e como património tradicional é importante preservar à memória futura.(a)
Não visam outra coisa os ensalmos que se seguem, recolhidos em Monte Córdova ( grande parte deles e com pequeninas diferenças também os encontramos pela mesma época, entre 1988 e 1989, em Paradela
– uma das aldeias mais antigas de Vilarinho, situada no outro extremo
nascente do Concelho de Santo Tirso -, na botica de “ ti Lucinda”, uma
pequena casa, modesta, regularmente visitada por gente de toda a parte e
onde atendia os padecimentos alheios, apesar da sua avançada idade, pois contava para cima de setenta anos. Somos testemunho que não pedia nada a ninguém e só aceitava o que lhe quisessem dar).
ENSALMOS PARA OS MALES
Zipela (1)
Deita-se num prato um pouco de azeite. Talha-se com nove folhas de oliveira,
riscando cruzes e molhando as folhas no azeite.
A talhadeira faz o sinal da cruz e diz;
-Zipela maldita sai-te daqui.
Assim como o azeite é bento,
Alumeia(2) o Santíssimo Sacramento.
(deita-se no braço, perna ou onde for)
r
Deixa-me isto são por fóra,
mais por dentro.
Termina fazendo o sinal da cruz.
Farfalho(3)
Arranja-se nove pontas de trapo de Iã vermelho. Leva-se a criança para junto da pia dos
porcos, onde são molhadas as pontas de trapo. Deita-se um pouco de mel no pano
e chega-se à boca.
Começa e acaba com o sinal da cruz.
-Farfola sai-te daqui.
Assim como porco e porca
comeu aqui.
Repete-se nove vezes e, no fim, deitam-se os trapos ao lume para queimar a doença.
Termina fazendo o sinal da cruz.
Talhar o Bicho(4)
A criança ou pessoa senta-se num banco ou cadeira. A ensalmista faz o sinal da cruz,
acende um fósforo e diz:
- Eu te talho,
bicho, bichão,
sapo, sapão,
aranha, aranhão,
largato(5) largatão,
saramela, saramelão,
ou bicho de qualquer nação,
Que seja comparante a este carvão.
Em louvor de S. Selivreste(6)
se confiar preste.
Nosso Senhor Jesus Cristo
Seja o verdadeiro mestre.
Repete nove vezes, utilizando em cada vez um fósforo a arder e riscando cruzes na parte doente. Termina com o sinal da cruz.
Fogo Lobo(7)
Neste, o ensalmista pega num fósforo e enquanto está a arder, diz;
-Iria três filhas tinha.
Uma ia ao monte,
outra à fonte,
a outra o que faria?
Ardia no fogo.
P'Io poder de Deus e da Virgem Maria,
em louvor de S. Selivreste,
se confiar preste.
Nosso Senhor Jesus Cristo
seja o verdadeiro mestre.
Enquanto vai recitando, risca cruzes na região afectada. Quando termina, faz o
acto de cuspir.
Rana(8)
Usa-se nove pontas ou folhas de silva;
-Santa Cecília teve um menino na serra,
nasceu-lhe uma rana debaixo da língua.
Nossa Senhora lhe disse, que talhasse com água de sal
e gomos de silva.
Que lhe rezasse um padre Nosso e Avé Maria.
Talha-se repetindo nove vezes e termina com o sinal da cruz.
Talhar a Dada (9)
- A padecente deverá munir-se previamente, levando um par de calças de homem, já vestidas.(10)
A ensalmista pega nas calças, dobra-as em cruz e diz:
má mulher te fez a cama.
Bô te(11) deu pousada,
Bô te(11) deu pousada,
Sub grade(12) sub lama(13)
sai-te dada desta mama.
Repete nove vezes, fazendo o sinal da cruz, antes e depois.
Talhar o Bichoco(14)
Mistura-se um pouco de sal com água corredia de fonte, numa malga, onde se junta
Uns pézinhos de funcho e unto de porco macho.
-Eu te talho,
bicho, bichoco,
com funcho e unto e sal,
e água de fonte pedral.
Repete nove vezes e termina com o sinal da cruz.
Deita-se tudo no lume para ao fim de três dias ficar sarado.
Zipelão(15)
Talha-se com nove pontas ou folhas de " sempre verde ”.(16) Deita-se num prato
um pouco de azeite onde se molham as folhas, fazendo pequenas cruzes sobre a
parte atacada.
-Sempre verde abençoado,
foste perdido, foste achado,
na fonte foste consagrado.
Talha-me esta zipela,
este ruborado.
Deita-se tudo no lume para ao fim de três dias ficar sarado.
Zimbrada(17)
Este e um dos raros ensalmos que pode ser feito pelo próprio, depois de
Zimbrada(17)
Este e um dos raros ensalmos que pode ser feito pelo próprio, depois de
regressado a casa. Com um fósforo aceso diz:
-Um me deu,
dois me viro
e três me tiro.
Em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo
Amém.
NOTAS
(1)-Erisípela. Vermelhidão com inchação dolorosa da pele.
(2)-ilumina
(3)-Inflamação na língua
(4)-Erupção na pele
(5)-Lagarto
(6)-S. Silvestre
(7)-Vermelhidão provocada por cobras ou outros repteis
(8)-0 mesmo que aftas
(9)-Abcesso no peito das mulheres, no período da amamentação
(10)-Usadas antes
(11)-Bom homem
(12)-Deverá ser: sob; o mesmo que; debaixo
(13)-Para curarem as dadas das tetas das vacas, os lavradores usavam lama
dos rios.
(14)-Erupção provocada na pele por qualquer réptil.
(15)-Manchas vermelhas
(16)-Sabugueiro
(17)-Dores de cabeça, acompanhadas de tremuras.
(a) - Meritório
trabalho tem sido feito desde há longos anos pelo Pe. António Fontes,
em Vilar de Perdizes, Montalegre, com os "Congressos de Medicina
Popular", também com a nossa participação nos anos 80.
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