Este capítulo tem por finalidade
registar alguns aspectos da medicina popular e crendices ou superstições, que se
verificavam em Vale de Lobo (Vale da Senhora da Póvoa), ainda nos anos 50 e 60 do século
passado, e talvez ainda se verifiquem actualmente, sobretudo na população mais
idosa. Com o progresso da ciência e medicina convencional, estes métodos foram
desaparecendo gradualmente.
Moléstias (doenças) e seus
tratamentos
Bichas (Bitchas)
- (vermes, em geral oxiúros ou lombrigas) Esfregações na
garganta com alho ou com petróleo e chá de hortelã.
Cabrunco (carbunculo)
- maligna antropozoonose que dizimava rebanhos em curto espaço de tempo, ao
ponto de serem considerados "campos malditos" os locais para onde os animais iam
pastar, e vitimou e deixou tanta gente marcada, é hoje debelada com uma certa
facilidade e deixou de constituir problema grave.
Todavia, ainda não há muitos anos, em
Vale de Lobo (Vale da Senhora da Póvoa), e certamente noutras localidades, a "pustula
maligna" (local onde a mosca tinha picado e deixado os esporos do "bacilo
Anthracis") tinha que ser queimada com ferro em brasa e ficar depois aquela
cicatriz que muita gente evidencia.
Quando a infecção já se estava a
estender, colocavam-se em volta sanguessugas para chuparem o sangue venenoso.
Cobrão (Zona)
- Mal cutâneo que era mais frequente em crianças e
adolescentes, e que se atribuía ao facto de se ter usado roupa por onde tinha
passado bicho peçonhento (aranhão, sapo, osga, etc.). O mal só passava se fosse
atalhado. Era preciso arranjar uma espécie de linimento formado pelo morrão de
palhas misturadas com azeite, para esfregações diárias e recitar:
Eu te atalho bicho ou bichão;
Aranhiço ou aranhão;
Sapo ou sapão;
Bicho de qualquer feição;
Eu te corto a cabeça e furo o coração.
Cravos ou Barrumas (Verrugas)
- Para desaparecerem, pode fazer-se o seguinte:
molha-se um lenço na fonte, asperge-se com sal, coloca-se sobre as mãos durante
uns momentos e abandona-se nas guardas de pedra. Tudo isto é feito sem ninguém
ver.
Nota: Eu tinha cravos na mão esquerda.
Meti uma areia de sal cravada nos cravos. Ao fim de alguns dias, estes
desapareceram completamente, sem deixar vestígios.
Mordela de alacrário
- (Mordedura de lacrau) Pomada preparada com lacraus fritos
em banha de porco.
O Ar
- Uma pessoa aparecia com dores de tipo reumatismal, num
braço ou numa perna, por exemplo. Tinha-se deitado ou sentado com certeza, em
sítio húmido e frio, ou tinha apanhado alguma corrente. Era "um ar". O melhor
remédio era atalhar-se. A moléstia desaparecia com a visita a uma benta que
resolvia o problema com uns defumadouros e rezas - um prato com água e azeite
sobrenadante era cruzado três vezes com uma brasa na extremidade de uma tenaz, e
dizia:
Tal como Nossa Senhora
Seu filho defumou
Para medrar e crescer,
Eu te defumo
Para o teu mal desaparecer.
Constipação de sol
- Uma criança andava com adinamia, inaptência, cefaleia... tinha apanhado uma
réstea de sol mais forte a que não resistiu. Era preciso atalhar a constipação
de sol. Havia mulheres conceituadas que se prestavam a isso. Procediam do
seguinte modo: o paciente sentava-se quieto e mudo numa cadeira enquanto a
mulher dobrava em quatro partes um pano de linho e enchia um copo de água fria
até dois terços de altura. Seguidamente colocava o pano sobre o copo e
invertia-o rapidamente sobre a cabeça do doente. Começavam, segundos depois, a
libertar-se para a superfície livre do líquido inúmeras bolhas gasosas. Se a
pessoa estava muito atacada libertavam-se mais do que se estivesse pouco
atacada. E a operação durava enquanto a mulher recitava esta reza:
Santo Inácio foi ao mato
Jesus Cristo o encontrou.
Jesus Cristo lhe perguntou:
- Onde vais tu Santo Inácio?
- Eu Senhor? Vou ao mato.
- Volta atrás Santo Inácio
Que hás-de ir atalhar uma constipação de
sol.
- Com quê Senhor?!
- Com um pano de linho, um copo de água
fria e três Avé-Marias.
Soltura de sangue pelo nariz
(hemorragia nasal ou epistaxis) - Mal frequente em
muitas crianças, especialmente no Verão, quando a vasodilatação dos capilares
nasais é mais intensa, cura-se em geral espontaneamente. Se demorar a passar, é
costume colocar-se ao paciente, que está imóvel e debruçado, uma cruz nas costas
feita com duas palhinhas. Para dar resultado é preciso o paciente não ter dado
conta do que lhe fizeram.
Tosse e Rouquidão
- Chá de alecrim, sabugueiro ou de "samarra" de cobra (pele de cobra seca)
Tressolho
- Para desaparecer, a pessoa atingida construía com pequenas pedras uma casinha
onde colocava uns pauzinhos e folhas secas, deitava-lhe o fogo e fugia sem olhar
para trás, dizendo em alta voz: "Quem acode ao fogo em casa do tressolho! Quem
acode ao fogo em casa do tressolho"
Crendices - Superstições
Auguamento
(Augamento)- Moléstia que segundo a crendice popular, pode atacar tanto homens
como animais, é originada por um desejo alimentar insatisfeito. Assim, é
necessário que a jumenta não vá buscar uma carga de milho sem ser "convidada"
com uma pequena porção; é preciso que a burra ou égua não coma determinada faixa
de feno sem se ter dado um bocadinho às vacas que estão a ver. É preciso que a
mulher que está gestante não deixe de provar um bocadinho do presunto que está a
ver comer à vizinha; é mister dar um pedaço de queijo à criança de colo que dele
tem desejos ao vê-lo comer à mãe; enfim, se isto e outras coisas no género não
se fizerem, pode aparecer o "auguamento" que precisa de atalho.
Borboleta a esvoaçar numa
divisão da casa - Prenúncio de notícias: boas se forem
claras e más se forem escuras ou pretas.
Cortar unhas à noite ou
quebrar objectos de vidro - Prenúncio de azar ou
contrariedade.
Derramar leite quando ferve
- O animal pode secar-se.
Entornar azeite sobre a toalha
da mesa - Tristeza, azar
Entornar vinho sobre a toalha
da mesa - Alegria.
Espojadouro
- É superstição do povo que não convém passar-lhe por cima ou
se se passar distraidamente, convém a pessoa benzer-se para não lhe acontecer
mal.
Lobisomens
- Na imaginação popular um lobisomem resulta do facto de
acontecer que por vezes haja sete irmãos, todos rapazes, e tendo havido
esquecimento do mais velho ter sido padrinho do mais novo. Um deles torna-se por
força do destino "lobisomem" e tem a triste sina de todas as noites tomar a
forma de lobo e passar na rua onde mora, e ter de percorrer a grande velocidade
e a altas horas, sete povoações. É muito difícil observarem-se. Mal se sentem,
já têm passado e nunca se sabe qual a hora e a rua onde passam. É pois difícil
quebrar o encantamento que consiste em esperar por ele a uma esquina e picá-lo
com uma agulha ou ferrão, na base da cauda.
Mudança dos dentes de leite
- Quando as crianças andam na mudança da dentição de leite para a dentição de
adulto, é bom pegar no dente que caiu e deitá-lo para a "pilheira" e
simultaneamente dizer:
Pilheirinha, pilheirão!
Toma lá este dente podre
E dá-me cá outro são.
Osgas
- São sáurios que procuram lugares escuros das habitações e que por mimetismo se
confundem com as paredes de granito. Têm na extremidade dos membros dedos com
ventosas que lhes permitem deslocar-se inclusivamente nos tectos.
Há a superstição popular de que se uma
pessoa se aproximar delas podem lançar excrementos de modo a atingir os olhos e
provocar cegueira.
Partir vidros
- Mau agoiro, sobretudo se forem escuros.
Remoinhos (Redemoinhos -
Abobrinhos) - Especialmente no Verão pode, por vezes,
notar-se o efeito de pequenas formações de ar que se deslocam com grande
velocidade simultaneamente com movimento de rotação e translação, levantando no
ar pó, folhas de árvores, etc. O povo afirma que é o demónio e que é
preciso a gente benzer-se para o afugentar.
Sonhos maus
- Têm de se contar, sob pena de poderem realizar-se no caso de sigilo.
Trovoadas
- Em qualquer lado incutem receio e respeito, mas em Vale de Lobo (Vale da
Senhora da Póvoa) devido ao eco que os trovões fazem nas montanhas e à riqueza
do seu subsolo em minérios, tornam-se por vezes um espectáculo terrífico e
deslumbrante. As que vêm do sul, são as mais temidas. Na verdade, as trovoadas
com os seus raios, o granizo, ventos fortes, etc., causam sempre prejuízos e é
natural que um povo com Fé invoque o Santo Nome de Deus. Assim, para que se
extingam depressa, especialmente as mulheres, costumam rezar um terço em que as
Avé-Marias se trocam por estas versos:
Com pressa vamos à cruz
Com pressa mãe de Jesus
Com pressa vamos a Vós
Mãe de Deus rogai por nós
Ou
Santa Bárbara bendita
Que nos céus estás escrita
Com um raminho de água benta
Livrai-nos senhora desta tormenta
Outras pessoas ainda, cantam a "Magnificata"
e queimam um pedacinho de rama de oliveira que foi benzido na missa de domingo
de Ramos ou um tição do madeiro da noite de natal. Há ainda quem diga que é bom
ter uma "peste" sobre a mesa.
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