Mensagem de Meijinhos

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quinta-feira, 5 de maio de 2011

PINTURA MURAL na Igreja de Nossa Senhora da Piedade de Meijinhos













Paula Virgínia de Azevedo Bessa
Docente da Universidade do Minho

RESUMO
O estudo que agora se apresenta sobre as pinturas murais na capela-mor da igreja de
Nossa Senhora da Piedade de Meijinhos centra-se no seu programa iconográfi co e sua
possível justifi cação e motivações, nas tendências de gosto que nele se manifestam e
propõe uma cronologia para a sua realização. São ainda apresentadas algumas refl exões
a propósito da responsabilidade pela encomenda
PALAVRAS-CHAVE
Orago, iconografi a, Virgem, padroeiro, abade.

Introdução
Na igreja de Nossa Senhora da Piedade de Meijinhos
conserva-se um importante programa de pintura mural na
capela-mor, quer na parede fundeira e nas paredes laterais,
quer no altar, na zona que corresponde à área atrás do retábulomor
que aqui existiu.
Quando as pinturas murais foram descobertas,
levantaram-se os rebocos em toda a capela-mor, tendo-se
verifi cado que havia restos de pintura no restante das paredes
laterais, em muito mau estado, sem leitura, pelo que, de novo,
reboco foi colocado sobre elas (131).
As pinturas conservadas foram restauradas em
1988 pelas Brigadas de Pintura Mural do Instituto José de
Figueiredo.
Em 1994, Teresa Cabrita publicou um primeiro
estudo sobre estas pinturas (cf. CABRITA, 1994). Dois anos
mais tarde, também Dalila Rodrigues se referia a elas na sua
excelente abordagem à pintura mural no norte de Portugal
(RODRIGUES, 1996: 40-68 e, particularmente, 49-50).
Remetemos a atenção dos leitores para ambos esses estudos.
No entanto, advertimos para o facto de que as considerações
que faremos seguidamente, por vezes, diferem das que então
foram feitas.

Programa iconográfico
Num «Censual da Sé de Lamego» do século XVI que A.
de Almeida Fernandes teve oportunidade de transcrever por
volta de 1942 e que veio a publicar em 1999 (FERNANDES,
1999), andando por então o paradeiro do documento original
perdido, referia-se a igreja de Meijinhos nos seguintes termos:
(...) Sancta Maria A igreja de Meiginhos he da presentação do
Senhor de Tarouca (...) (FERNANDES, 1999: 31)
Almeida Fernandes cria que este Censual deveria ser de
cerca de 1520 mas incluindo ocasiões diversas de compilação e
referindo dados mais tardios, não ultrapassando, no entanto,
os meados do século XVI (132).
Esta informação no «Censual da Sé de Lamego» sobre
a igreja de Meijinhos é preciosa porque nos indica qual era,
então – pelo menos, entre 1520 e os meados do séc. XVI, - o
orago da igreja – Santa Maria – e qual o seu padroeiro – o
conde de Tarouca.
Por outro lado, no «Juro dos Sabudos do Senhor bispo
e terças de suas Egrejas e assy de outras cousas que Sua
Senhoria mã[n]dou fazer .SS[scilicet]. camaras visitaçoees
das Egreias as que pagam colheitas e confi rmações e assy
seus offi ciaes de seu bispado com outras cousas mays»
(133) refere-se, por duas vezes, a igreja de Meijinhos, sempre
indicando como seu orago Santa Maria (134), e esclarecendo que
a apresentação cabia ao Senhor de Tarouca.
Também no «Liuro das avaliacoes das Jgrejas e
benefi cios e mosteiros deste Reino de portugal que se fez per
comisom de dom geronimo Recçenas de capite Ferro estando
por numçio nestes Reinos pera o qual mamdou pubricou [sic]
cartas per todo Reino E comeca loguo ho bispado de lameguo
a qual avaliação he das Rendas que começaram per dia de
sam Joham bautista do ano de mil quinhentos e trimta e sete
e acabou per outro tal dia de trimta e oyto» (135) se menciona
a igreja de Meijinhos, mais uma vez indicando como seu orago
Santa Maria e, desta feita, indicando-nos quem era o abade
de então, certamente privilegiado, pois aqui não devia residir,tendo, talvez por isso, nomeado um
capelão para prover ao serviço religioso
na paróquia, a quem pagava. A menção é
tão relevante que vale a pena transcrevêla:
(...) A Jgreja de samta mª de meijinhos
decrarou pº d’albuquerque abade que a dita
Sua Jgreja Remde a cadano comumente
quatorze mill r[eae]s de que pagua ao capelão
cimquo mill r[eae]s.(....) (136)
Na região norte, desde 1497, D.
Diogo de Sousa, nas suas Constituições
Sinodais para a diocese do Porto, havia
determinado que em todas as capelasmor
de todas as igrejas paroquiais e de
mosteiros houvesse imagens dos seus
santos padroeiros:
(...) Como os dom abbades e dom
priores e abbades ham de teer ymageens de
seus sanctos nos altares mayores.
Item veendo como as ymageens sam
aprouadas per dereito e quanta edifi caçam
e deuaçam causam nom soomente aos
ignorantes mas aos sabedores e leterados.
Isto meesmo como seja cousa justa que
cada sancto em seu logar e ygreja preceda
aos outros Ordenamos e mandamos que
assy nos moesteiros de sam beento e de
sancto agostinho como nas outras ygrejas
parrochiaaes os dom abbades e dom priores
e abbades ponham as ymageens de seus
sanctos no meo do altar: as quaaes sejam
assy pintadas em retauollos ou esculpidas em
pedra ou paao e que respondam aas rendas
da ygreja donde esteuerem. E quem isto nom
comprir atee dia de pascoa de resurreiçam
o auemos por condenado em tres cruzados
douro se for moesteiro conventual e seendo
parrochial em huum cruzado pera as obras da
nossa see e nosso meirinho (...)” (137)
arcebispo de Braga, toma exactamente a
mesma resolução para esse arcebispado
(138). Ora a diocese de Lamego era
sufragânea do arcebispado de Braga,
pelo que é de esperar que o teor destas
Constituições de D. Diogo de Sousa
fosse conhecido na diocese de Lamego
e não será de admirar que as mesmas
preocupações com a manutenção e
decoração das igrejas manifestadas
por D. Diogo tenham infl uenciado os
prelados de Lamego (139).
A assim ser, o programa de
pintura mural realizado na capelamor
da igreja de Meijinhos deveria ser
dedicado a temática mariana, de acordo
com a invocação da igreja. E, de facto,
na nossa opinião, assim é. Na verdade,
é nosso entendimento que ao centro
da parede fundeira, se representa uma
Assunção e Coroação da Virgem,
ladeada pelo Encontro de Santa Ana
e S. Joaquim à Porta Dourada e pelo
Nascimento da Virgem, assim como,
na parede do lado do Evangelho, se
conserva parte de uma Anunciação e,
em frente a esta, na parede do lado da
Epístola, uma Visitação da Virgem a
Santa Isabel. Como sabemos que existiu
pintura no restante das paredes laterais
desta capela-mor, é provável que outros
temas marianos ou, talvez, da Infância
de Jesus, nos quais, de resto, a Virgem
desempenha papel proeminente, aí se
desenvolvessem.
Importa agora notar que
pensamos que todo este programa que
subsiste na capela-mor da igreja de Meijinhos corresponde
a uma única campanha de execução, o que se evidencia pela
utilização dos mesmos tipos de motivos decorativos usados
nas barras de enquadramento das várias cenas fi gurativas que
inclui.
A esta campanha de pintura mural é ainda de atribuir a
execução do frontal do altar-mor, organizado em três painéis
separados entre si por barras com motivo de encordoado, os
dois laterais com composições com ramagens em grisaille
sobre fundo vermelho e o central com uma representação da
Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, com a serpente
a ela enrolada. Como Louis Réau comentava, «a prefi guração
adamica opõe a árvore proibida à Cruz do Salvador: ‘“morte
veio da Árvore – disse Santo Ambrósio – a vida da Cruz’”
(RÉAU, 1999, T.1, I: 109).
Como dissemos, ao centro da parede fundeira da
capela-mor opta-se por condensar num mesmo painel central
dois temas maiores do ciclo da glorifi cação da Virgem, o
tema da Assunção e o da Coroação da Virgem (140). Esta cena
encontra-se ladeada pelo reconhecimento por Santa Ana e S.
Joaquim da (imaculada) concepção de Maria no Encontro à
Porta Dourada e pelo Nascimento da Virgem.
Nem o Encontro de Santa Ana e S. Joaquim à Porta
Dourada, nem o Nascimento da Virgem nem a Assunção e
Coroação da Virgem são tratados nos Evangelhos canónicos
de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João nem noutros textos
do Novo Testamento. No entanto, esses temas são versados
nos evangelhos apócrifos. O Encontro de S. Joaquim e Santa
Ana e o Nascimento da Virgem são tratados nos chamados
apócrifos da Natividade, ambos os episódios constando do
evangelho do Pseudo Mateus (141). A Assunção da Virgem é
tratada nos apócrifos assuncionistas (142). Deve salientar-se
que os evangelhos apócrifos tiveram ampla circulação entre a
cristandade durante a Idade Média e na primeira metade do
século XVI, sendo frequente fonte de inspiração iconográfi ca e,
também, para as produções dramáticas medievais como foi o
caso, por exemplo, de várias Miracle ou Mystery plays inglesas
(143). De qualquer forma, as narrativas referentes ao Encontro de
S. Joaquim e Santa Ana e ao Nascimento da Virgem, segundo
o evangelho do Pseudo Mateus, e as da Assunção, segundo
o Livro de S. João Evangelista (O Teólogo), foram alvo de
refl exão por vários autores cristãos dos primeiros séculos e
popularizadas, por exemplo, no séc. XIII, pela Legenda Aurea
de Santiago de Voragine (144), dominicano e, depois, arcebispo
de Génova (145).
Uma vez que os temas destas pinturas foram
interpretados diversamente por outros autores e que
estes textos andam geralmente arredados das leituras
contemporâneas, apresentaremos em anexo algumas
transcrições, particularmente, relativas ao Encontro de
Santa Ana e S. Joaquim que, de resto, pressupõe a crença na
imaculada concepção de Maria.
Também a Assunção, descrita nos evangelhos
apócrifos assuncionistas, foi popularizada não só por Gregório
de Tours, no séc. VI, mas também pela Legenda Aurea, no séc.
XIII (RÉAU, 2000, t. 1, II: 643).
A Assunção de Meijinhos: é uma Assumptio corporis:
a Virgem, com os pés sobre uma lua em quarto crescente, é
elevada ao céu por anjos, acompanhada por anjos músicos.
Em Meijinhos, a Virgem é ainda coroada pela Santíssima
Trindade.
Os dois temas do Encontro e da Assunção fi gurados em
Meijinhos testemunham duas facetas do culto mariano que se
foram desenvolvendo muito antes de se constituírem como
dogmas.
Na verdade, se, no Ocidente, a festa da Imaculada
Concepção de Maria foi sendo incluída em calendários
litúrgicos desde o séc. IX (na Irlanda), e se esta ideia e devoção
foi recebendo a aderência de franciscanos, dos chanceleres da
Universidade de Paris Pierre d’Ailly e Jean Gerson, aprovada
pelo papa franciscano Sixto IV em 1477, seguida pelos Jesuítas
a partir do séc. XVI, reforçada pelo Concílio de Trento, na
verdade só se constituiu como dogma em 8 de Dezembro de
1854 pelo papa Pio IX com a sua encíclica Ineffabilis Deus
(RÉAU, 2000, t.1, II: 81-90, 163, 167-168).
Semelhante situação ocorreu com a Assunção de Nossa
Senhora, tema que aparece fi gurado no Ocidente pelo menos
desde o século XIII e que, no entanto, só foi constituído como
dogma pelo papa Pio XII no Ano Santo de 1950 (cf. RÉAU,
2000, t.1, II: 638).
A Anunciação é referida no Evangelho de S. Lucas
(1: 26-38), assim como no Protoevangelho de Santiago e no
Evangelho da Natividade da Virgem, cujos detalhes foram
popularizados pela Legenda Aurea e pelo Speculum Historiae
de Vicente de Beauvais, assim como no Evangelho Arménio
da Infância, este sobretudo infl uente na iconografi a bizantina
(RÉAU, 2000, t.1, II: 637-648).
Também a Visitação da Virgem a Santa Isabel é referida
no Evangelho de S. Lucas (1: 39-56). A festa da Visitação foi
instituída no séc. XV como parte do processo para fi ndar o
grande Cisma do Ocidente (RÉAU, 2000, t.1, II: 204).

Importa ainda lembrar que todos os temas marianos
incluídos no programa de Meijinhos estão ligados a festas
litúrgicas: a Imaculada Concepção de Maria (implícita no
Encontro de Santa Ana e S. Joaquim) celebra-se a 8 de
Dezembro, a Natividade de Maria a 8 de Setembro, a Anunciação
a 25 de Março, a Visitação da Virgem a Santa Isabel a 2 de
Julho e a Assunção da Virgem a 15 de Agosto. Na verdade, em
1497, todas estas datas (e ainda o dia de Nossa Senhora das
Neves) eram consideradas festas de guarda e jejum na diocese
do Porto (146). Em 1500, na diocese da Guarda, estabelecese
que as festas do Nascimento da Virgem, Anunciação e
Assunção são de jejum e guarda, sendo as restantes de guarda
mas não de jejum (147). Cerca de 1506, na arquidiocese de Braga,
à semelhança do que havia sido estipulado para o Porto, todas
estas festas são consideradas de guarda e jejum (148).
Parece, assim, que este amplo conjunto de pinturas
murais se constituía como afi rmação de vasto programa
devocional dedicado a Nossa Senhora, com carácter narrativo,
uma vez que percorre vários momentos signifi cativos da
história mariana, da sua Concepção à sua Assunção e Coroação
e, talvez ainda, de referência a momentos litúrgicos que se iam
celebrando ao longo do ano.
2. O Gosto
Como já referimos, somos de opinião que todo este
programa de pintura mural foi realizado numa mesma
campanha. De facto, nos enquadramentos de todas as cenas
fi gurativas se usam, entre outras, barras com folhas enroladas
(em cinzentos) sobre fundo vermelho. Estas barras são, aliás,
semelhantes no gosto e nas opções de cor às que ocorrem em
Sernancelhe, enquadrando lateralmente Santa Margarida
(segunda intervenção no arco triunfal do lado do Evangelho)
(149). No entanto, a barra de folhagens enroladas no topo da
Santa Margarida de Sernancelhe não tem paralelo em Meijinhos
e a pintura fi gurativa em Meijinhos e em Sernancelhe têm
características diferentes. Parece-nos que os paralelos entre
estas pinturas são mais relativos ao gosto e determinados
por uma cronologia semelhante do que de molde a poder-se
atribuí-las seguramente a uma mesma ofi cina.
No entanto, apesar das pinturas murais de Meijinhos
terem sido todas realizadas numa mesma intervenção,
sentem-se acentuadas diferenças de gosto, de opções de paleta
cromática e de execução entre, por um lado, a Anunciação, o
Encontro, o Nascimento da Virgem e a Visitação da Virgem
a Santa Isabel e, por outro lado, o painel central dedicado
ao tema da Assunção e Coroação da Virgem. Será que, à
semelhança do que aconteceu em casos documentados de
pintura retabular a óleo sobre madeira, por exemplo, no caso
da realização do retábulo para o vizinho mosteiro de Ferreirim
(150), também na execução de pintura mural se recorria a
parcerias entre diferentes ofi cinas? Claro que estas diferenças
poderiam explicar-se, também, por grande liberdade de
actuação entre membros de uma mesma ofi cina, embora seja
raro encontrarem-se tão acentuadas diferenças num programa
realizado numa mesma campanha.
O que resta da Anunciação, o Nascimento da Virgem,
o Encontro de Santa Ana e S. Joaquim e a Visitação da Virgem
a Santa Isabel revelam cuidado e empenho no tratamento de
pormenores cenográfi cos, nos dois primeiros casos tratandose
de cenas de interior e, nos segundos, de cenas de exterior.
Na Anunciação a cena organiza-se em vários planos. No
primeiro plano fi gura-se o arcanjo S. Gabriel surpreendendo
com a sua presença e mensagem a Virgem, enquanto esta
lia; entre ambos coloca-se vaso de gosto renascentista que,
certamente, continha as costumeiras açucenas, hoje tão
apagadas que mal se vêem. Uma loggia com arcos de volta
inteira e colunas cujos capitéis com folhagens parecem evocar
capitéis coríntios separa a cena que se desenrola no primeiro
plano da fi guração, dum plano recuado, o da câmara de dormir
Virgem, fi gurando-se aí a sua cama com dossel. Os detalhes
escolhidos estão carregados de valores simbólicos e evocativos
(151).
No Nascimento da Virgem recorre-se a uma sucessão
de planos para evocar a profundidade do espaço. Tentamse
representações perspectivadas que, no entanto, não têm
coerência entre si (das arcas, por exemplo), assim como não
se reduzem convenientemente as escalas para os planos mais
recuados. No primeiro plano fi guram-se as mulheres que
cuidam da recém-nascida Virgem Maria, enquanto no último
plano se representam Santa Ana reclinada e S. Joaquim.
Embora, aparentemente, o pintor os tenha pretendido colocar
em plano mais recuado, Santa Ana e S. Joaquim foram tratados
com tamanho idêntico ao das personagens no primeiro
plano, sem a sufi ciente redução de escalas que indicaria o seu
afastamento, talvez por se tratar de personagens centrais para
a narrativa. Toda a cena é pontuada pela presença de vários
objectos (o fogareiro aceso que servira para aquecer a água
para o primeiro banho da Virgem, as arcas para as roupas,
gomis), como, aliás, é corrente nas representações deste tema.
No Encontro de Santa Ana e S. Joaquim, mais uma
vez se recorre à sucessão de planos escalonados para evocar
a profundidade do espaço, indicando-se larga paisagem,
fi gurando-se vasta cidade (Jerusalém) com larga porta na cerca
muralhada – a Porta Dourada. O primeiro plano dá destaque a
Santa Ana e S. Joaquim, as personagens centrais da cena.
A Visitação está em muito menos bom estado de
conservação do que as pinturas que comentámos anteriormente.
No entanto, o mesmo cuidado na caracterização cénica e de
personagens parece estar presente, como se evidencia no
tratamento do rosto de Santa Isabel que indica uma mulher já
idosa, contrastando com o rosto jovem de Maria.
Em todas estas pinturas fi gurativas se procura indicar
a profundidade do espaço, como vimos, pela indicação de uma
sucessão de planos ascendentes, nem sempre reduzindo as
escalas para tudo o que se fi gura nos planos mais recuados.
Este recurso à sucessão de planos ascendentes foi relacionado
por alguns autores com idêntico uso nas artes da tapeçaria152.
Convirá, no entanto lembrar que este tipo de recurso não
é exclusivo da tapeçaria, ocorrendo também na pintura
portuguesa a óleo sobre madeira (153).
Em todas estas pinturas se opta por uma paleta
cromática em que dominam os ocres, ainda que se usem azuis
e mais esparsamente, tanto quanto o estado de conservação
das pinturas permite avaliar, verdes.
Na Assunção e Coroação da Virgem a paleta cromática
parece ser mais variada do que a das pinturas que anteriormente
comentámos, fazendo-se muito maior uso do branco e usandose
maior variação de vermelhos e de azuis. Por outro lado, o
desenho dos rostos dos Apóstolos que, perante o túmulo vazio
de Nossa Senhora assistem à sua Assunção e Coroação, assim
como o dos anjos e suas vestes, parece ser mais gótico que o
das restantes pinturas. E, no entanto, a análise que fi zemos das
juntas das jornadas indica que esta pintura foi a última a ser
realizada na parede fundeira desta capela-mor. Perguntamonos
se, tratando-se do painel central, não terá sido executado
por mestre de ofi cina, provavelmente mais velho e com gosto
mais gótico do que o que se manifesta nas restantes pinturas
fi gurativas nesta capela-mor. Gostaríamos ainda de aventar
a probabilidade de existir parentesco entre esta pintura da
Assunção em Meijinhos e a pintura mural, incluindo fi guração
dedicada ao mesmo tema, recentemente descoberta na
igreja de Argomil, Pomares, Pinhel. No entanto, o estado de
conservação em que essas pinturas se encontram não permite,
ainda, comparação segura pelo que tal hipótese só poderá ser
convenientemente verifi cada após o restauro destas pinturas
de Argomil.
3. Cronologia
Estas pinturas não estão datadas, o que nos coloca
perante a difícil tarefa de propor uma hipótese fundamentada
de datação. Parece-nos que o melhor método para encontrar
resposta para este problema da atribuição cronológica destas
pinturas será procurar paralelos para os seus pormenores que
ocorram em pinturas conhecidas datadas. Não se entendam
porém os paralelos que exporemos como atribuições autorais,
o que não é nossa intenção e seria completamente errado,
como se verá.
Nestas pinturas de Meijinhos cuidam-se pormenores
de caracterização cenográfi ca e das personagens tratadas,
dando-se acentuado destaque a pormenores de vestuário
- de gosto cortesão (154) - e é justamente para esses detalhes
que procuraremos paralelos, particularmente em retratos do
século XVI que documentem idênticos aspectos do modo de
vestir de corte.
Nas vestes femininas opta-se frequentemente por
vestidos de decote quadrado que, por vezes, deixam ver a
camisa branca de decote redondo. Tais detalhes ocorrem
também nas pinturas murais em Santo Isidoro, Marco de
Canaveses, pinturas datadas de 1536. Por outro lado, em
Meijinhos, por vezes, as mangas dos vestidos têm aberturas
por entre as quais se repuxam as mangas tufadas da camisa
branca que lhes subjaz; tal pormenor ocorre, por exemplo, no
retrato de D. Leonor de Áustria de Joos van Cleve de 1530, no
Museu Nacional de Arte Antiga (155), assim como na pintura
mural fi gurando Santa Marinha na capela-mor da igreja de
Trevões, S. João da Pesqeira, pintura datada de 1541(156).
Por outro lado, o S. Joaquim do Nascimento da Virgem
é fi gurado com veste curta e casaco que lhe deixa ver os
joelhos, com amplo colar sobre o casaco, e, na cabeça, barrete
de abas largas. Todos estes detalhes de vestuário ocorrem,
por exemplo, no retrato de Henrique VIII de 1530, realizado
por Hans Holbein, o Jovem, e pertencente à Royal Collection,
Londres, Inglaterra. Neste retrato de Henrique VIII, ocorre
também o pormenor das mangas das vestes terem aberturas
pelas quais se puxam tufados da camisa branca que lhes subjaz
e que, em Meijinhos, aparecem no vestuário das duas mulheres
que tratam da pequena Virgem Maria. O mesmo pormenor de
tratamento das mangas ocorre também no retrato de Francisco
I de França por Jean Clouet e François Clouet, de cerca de 1530,
pertencente à colecção do Louvre. Apenas alguns exemplos
mas, parece-nos, sufi cientemente esclarecedores: todos os
retratos que referimos são ou de 1530 ou de cerca dessa data,
as pinturas murais de Santo Isidoro estão datadas de 1536 e as
da capela-mor da igreja de Trevões datam de 1541. Certamente
que a ofi cina que operou em Meijinhos não conhecia os retratos
que referimos mas eles documentam aspectos de gosto no
vestuário cortesão de cerca dos anos trinta de quinhentos que,
muito provavelmente, se seguiam também em Portugal. Aliás,
e procurando paralelos em pintura portuguesa datada, a óleo
sobre madeira, parte dos detalhes de vestuário do S. Joaquim
do Nascimento da Virgem se assemelham aos que ocorrem
na pintura de 1541, mais tardia, portanto, que os retratos
que referimos, atribuída a Garcia Fernandes e designada por
Terceiro Casamento de D. Manuel, no Museu da igreja de S.
Roque de Lisboa.
Concluindo, os paralelos mais exactos para pormenores
de tratamento de vestuário que encontrámos para idênticos
detalhes nas pinturas de Meijinhos, datam de entre 1530 e 1541.
Parece, assim, justifi cado supor que o programa de pintura
mural nesta igreja seja de cronologia idêntica e, atentando
nas pinturas murais referidas, eventualmente, da segunda
metade dos anos trinta ou dos inícios dos anos quarenta de
quinhentos.
Encomenda
O estudo das Visitações conhecidas do século XVI para
outras zonas do país (157) indica-nos que a responsabilidade por
obras de manutenção e de enriquecimento das igrejas paroquiais
era, geralmente, dividida entre o padroado ou abades
por ele apresentados, a quem cabia o cuidado da capela-mor,
e os paroquianos que eram responsáveis pelo corpo da igreja
(158).
Uma vez que este programa se localiza na capela-mor,
a sua encomenda deveria caber ou ao conde de Tarouca (que,
como era vulgar na época, certamente quereria indicar a
sua acção mecenática com a colocação do seu brasão, o que
não se fez) (159) ou ao abade por ele apresentado. Quando o
padroeiro apresentava um abade, este geria os bens fundiários
associados à igreja, fi cando responsável pelas obras e bens
móveis necessários na capela-mor, enquanto que, nomeando-
se um capelão, este apenas recebia um
salário fi xo (e, geralmente, o pé do altar,
ou seja as oferendas feitas durante os
serviços religiosos), não sendo, por isso
responsabilizado por tais obras.
Parece-nos que, se a
responsabilidade desta encomenda de
pintura mural tivesse sido do conde de
Tarouca, este determinaria que aí se
representasse o seu brasão, uma vez
que, no século XVI, era costumeiro fazêlo160,
e, por outro lado, porque tal mais se
justifi caria pelo facto de Meijinhos ser a
única igreja do seu padroado na diocese
de Lamego (161).
Supomos que as pinturas murais
de Meijinhos, à falta do brasão do
padroeiro, teriam sido encomendadas
pelo abade da igreja da altura em que se realizaram. Pelas
razões já expostas, parece-nos provável que elas tenham sido
realizadas na segunda metade dos anos trinta ou, ainda, pelos
inícios dos anos quarenta de quinhentos. Como já referi,
sabemos que em 1537-38, era abade desta igreja Pedro de
Albuquerque. Terá sido este o abade que encomendou as
pinturas murais na capela-mor desta igreja? Infelizmente, e
apesar da investigação a que procedemos na Torre do Tombo,
na Biblioteca Nacional e no Arquivo Diocesano de Lamego,
não foi possível localizar Livros de Confi rmações ou Livros
de Registos de Títulos referentes à diocese de Lamego e para
esta época, cuja existência se desconhece, razão pela qual não
pudemos estabelecer a sequência dos abades de Meijinhos para
a primeira metade do século XVI, nem apurar dados biográfi cos
sobre eles, por exemplo, as datas em que detiveram o benefício
da igreja paroquial de Meijinhos. A identidade do abade
encomendador destas pinturas murais – que não é impossível
que tenha sido o abade Pedro de Albuquerque – terá, assim,
por ora, que fi car por esclarecer defi nitivamente.
5. Anexo
O encontro de S. Joaquim e Santa Ana à Porta Dourada
segundo o Evangelho do Pseudo Mateus:
«Por aqueles dias vivia em Jerusalém um homem chamado
Joaquim, pertencente à tribo de Judá. Este pastoreava as suas ovelhas
e temia a Deus com simplicidade e bondade de coração. (...) Quando
chegou aos vinte anos tomou por mulher a Ana, fi lha de Isacar, que
pertencia à mesma tribo, isto é, da estirpe de David. E depois de viver
vinte anos de matrimónio, não teve dela fi lhos nem fi lhas.
«E sucedeu que se encontrava Joaquim durante as festas
entre os que ofereciam incenso ao Senhor, preparando por sua vez
as oferendas perante a presença de Deus. Nisto, se aproximou dele
um escriba chamado Rubem e disse-lhe: “Não te é lícito misturareste
entre os que oferecem os seus sacrifícios a Deus, visto que Ele não
se dignou bendizer-te, dando-te descendência em Israel”. Assim,
pois, sentindo-se envergonhado perante o povo, se retirou do templo
chorando, e, sem passar por casa, se foi com seus pastores e rebanhos
para uma região muito longínqua, de forma que, durante cinco meses
consecutivos, Ana, sua mulher, não voltou a ter notícias dele (...).”
«Cinco meses depois de choros e oração, aparece a Ana um
anjo que lhe diz: “(...) Não temas Ana porque Deus determinou que
tenhas um descendente e a tua prole será digna de oração por todos os
séculos até ao fi m”.
«(...) Por aquele mesmo tempo apareceu um jovem nas
montanhas em que Joaquim apascentava os seus rebanhos e disselhe:
“Como é que não voltas para o lado da tua esposa?” Joaquim
replicou: “Há vinte anos que a tenho por mulher e, posto que o Senhor
teve por bem não me dar fi lhos dela, vi-me obrigado a abandonar o
templo de Deus ultrajado e confuso. Para que voltarei a seu lado, cheio
como estou de opróbios e vexações? Aqui estarei com os meus gados,
enquanto o Senhor quiser que me ilumine a luz deste mundo. Mas nem
por isso deixarei de dar de muito boa vontade aos meus criados a parte
que costumava dar aos pobres, às viúvas, aos órfãos e aos servidores de
Deus”. Ainda não tinha acabado de dizer isto e o jovem respondeu-lhe:
“Sou um anjo de Deus que me deixou ver hoje a tua mulher quando
fazia a sua oração, sumida em pranto. Fica sabendo que concebeu já
de ti uma fi lha. Esta viverá no templo do Senhor, e o Espírito Santo
repousará sobre ela. A sua dita será maior que a de todas as mulheres
santas. Tanto é assim que ninguém poderá dizer que, nos tempos
passados, houve alguma semelhante a ela e nem sequer haverá uma,
no futuro, que se lhe possa comparar. Por isso, desce destas montanhas
e corre para a tua mulher. Encontrá-la-ás grávida, pois Deus dignouse
suscitar nela um gérmen de vida (o que te obriga a mostrares-te
reconhecido para com Ele); e esse gérmen será bendito, e ela mesma
será também bendita e será constituída mãe de eterna bênção”.
«(...) Andaram cerca de trinta dias consecutivos e, quando
estavam já próximos, um anjo de Deus apareceu a Ana enquanto
estava em oração e disse-lhe: “Vai-te à porta que chamam Dourada e
sai ao encontro do teu marido porque hoje mesmo chegará”. Ela pôs-se
a caminho a toda a pressa com as suas donzelas. E, chegando, pôs-se
a orar. Mas estava já cansada e aborrecida de tanto esperar, quando,
de repente, levantou os olhos e viu Joaquim que vinha com os seus
rebanhos. E em seguida, saiu ao seu encontro, abraçou-o e deu graças a
Deus dizendo: “Há pouco era viúva e já não o sou; não há muito tempo
era estéril e eis que concebi nas minhas entranhas”.
«(...) Cumpridos nove meses depois disto, Ana deu à luz uma
fi lha e pôs-lhe o nome de Maria». Extraído de SANTOS OTERO, 2006:
79-82 - a tradução para português é da nossa responsabilidade.


Como citar este artigo: BESSA, Paula Virgínia de Azevedo – Pintura
mural da igreja de Nossa Senhora da Piedade de Meijinho. In RESENDE,
Nuno (coord.) – O Compasso da Terra. A arte enquanto caminho
para Deus, volume I: Lamego. Santa Maria da Feira: Diocese de Lamego,
2006, pp. 276-286..

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