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domingo, 14 de outubro de 2012

BENZEDURAS, SUPERSTIÇÕES E MEDICINA POPULAR TRASMONTANA

Como Atalhar o Coxo
 
    Apresentamos algumas das antigas mezinhas e ensalmos para cortar o mal do bicho ou coxo, que é uma erupção cutânea causada pelo veneno de alguns animais rastejantes, seja por contacto directo com a pele ou através da roupa estendida ao sol, recorrendo a alguns exemplos e variações regionais.
 
    Este receituário, obviamente, tem fundas raízes no tempo em que as casas tinham telhados de colmo e a miséria era tanto como os piolhos, mas retrata, na verdade, a essência da legítima cultura tradicional popular, naquela espantosa ousadia de atalhar o mal com um arsenal terapêutico rústico.
 
    No distrito de Vila Real pegava-se numa faca e talhava-se uns golpes e cruzes imaginários no ar, dizendo por três vezes:
Eu te talho e corto,
Bicho, bichão,
Sapo, sapão,
Aranha, aranhão,
Cobra ou cobrão,
Bicho de toda a nação,
Cabeça, meio,
Rabo e coração,
Em louvor de São Silvestre,
Quanto t’eu faço
Tudo preste,
E de Nosso Senhor
Que é verdadeiro mestre.
 
    O cerimonial, que se repetia durante três dias, terminava sempre com um padre-nosso e ave-maria, em que por sina fatal, por vezes, a cura era de resultados duvidosos.
 
    Em Mesão Frio, enquanto se fazia uns golpes imaginários sobre o paciente, diziam-se por três vezes:
Indo eu pela Serra da Arderia
Incontrei-me com a Birge Maria
E le dixe que teinha bicho
Que me comia e me roía.
Ela me dixe que o talhasse
Com três folhinhas ásperas
E três pinguinhas de água fria.
P’lo poder de Deus e de Santa Maria
Sem no seu poder nada se faria.
Em louvor do Santíssimo Sacramento
Este bicho que puri passou
Que ele secaria.
 
    Na mesma região, havia ainda outra maneira de talhar o coxo, usando desta feita uma navalha de cabo de osso para fazer cruzes sobre as lesões resultantes da passagem do bicho, ritual que deveria ser executado entre o meio-dia e sol-pôr, “ao mingar do dia”, e sistematicamente repetido três vezes e durante três dias, rematando sempre com um padre-nosso e ave-maria, após esta cantilena:
Eu te talho
Bicho, bichão,
Cobra, cobrão,
Sapo, sapão,
Aranha, aranhão,
Bicho de toda a nação.
Eu te corto cabeça
E meio e rabo
E dentes e unhas
E olhos e reigada.
Pelos poderes de Deus e da Virgem Maria
E São Pedro e São Paulo
E o milagroso São Gonçalo
Tu serás são e salvo.
 
    Em Santa Marta de Penaguião diziam por três vezes o seguinte ensalmo, enquanto a benzedeira talhava a parte doente, culminando com a reza dum padre-nosso:
Eu te talho e retalho,
Bicho, bichão,
Sapo, sapão
Aranha, aranhão,
Toda a casta de bicho
Que for de nação
Eu te talho
Que não cresças
Nem avessas.
Eu te corto o rabo
E a cabeça.
 
    Para conhecimento transcrevo a oração tradicional das terras de Barroso para combater as borbulhas do coxo, doença vulgaríssima em eras de antanho:
Jesus, Jesus, santo nome de Jesus
Que é o ramo da virtude,
Onde eu puser minha mão,
Nosso Senhor ponha virtude
E Nossa Senhora a saúde.
Toupa matei,
Guardadeira que matei,
Para tudo a apliquei
Mezinha farei
Sapo, saparrão,
Cobra, cobrão,
Aranha, aranhão,
Rato, ratão,
Lagarto, lagartão,
Zipela, zipelão,
Chupica sardão,
Bichos da mesma nação,
Seques não reverdeças,
Não juntes o rabo
Com a cabeça,
Pelos apóstolos São Pedro e Santiago
Que deste mal venha amor,
Como foram as cinco chagas
De Deus Nosso Senhor.
Pela graça de Deus e da Virgem Maria,
Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.
 
    Já em Bragança, quem talha o mal repete por nove vezes a ladainha sequente, rezando também um padre-nosso e ave-maria:
Sapo, sapão,
Coxo, coxão
E todos os bichos que arrastam pelo chão,
Nem cresça nem desvaneça
Nem junte o rabo com a cabeça.
Lagarto, lagartão,
Cobra, cobrão,
Aranha, aranhão,
Rata, ratão,
Coxo maldito vai-te daqui,
Todos os santos e santas bebam aqui.
À honra de Deus e da virgem Maria
Um padre-nosso, uma ave-maria.
 
    Por sua vez, em Vimioso, a cantilena é esta, ao mesmo tempo que se talha a zona afectada com uma navalha:
Eu te corto, bicho,
Sapo e aranhão,
Vida e coração
E todo o bicho
Que arrasta pelo chão.
 
    Num ritual transmontano que sobreviveu até à entrada do século XX, porém desaparecido há muito, a bênção para curar e atalhar o coxo era mais complexa e diversa, como vamos ver:
Jesus, nome de Jesus
Eu te benzo coxo
De sapo ou sapão
De cobra ou cobrão
De aranha ou aranhão.
De rigor ou salteador
Eu te corto e recorto
Coxo de toda a nação
Com o gadelho de lã ludra
Do lombo da ovelha viva
Azeite da oliva
Do Monte Olivete
Queimada sejas tu
Como é a lã no lume
Com honra de Deus
E da virgem Maria
Um Padre-Nosso
E Ave-Maria.
 
    Em Vila Flor o ensalmo praticado ainda na primeira metade da centúria de 1900 era este, exemplo que encerra, por ora, esta miudalha da antiga medicina popular tradicional de Trás-os-Montes:
Bicho corto,
Bicho talho,
Bicho de toda a geração
Ou cobra, cobrão
Aranha, aranhão
Sardanisca ou sardão
Bicho de toda a nação,
Corto-te a cabeça
E o rabo e o meio
E o coração
P’lo poder de Deus e da Virgem Maria,
São Pedro e São Paulo,
Apóstolo Santiago,
Milagroso São Vicente,
Que teu mal não vá pra diante
A que teu corpo fique são e salvo
Como na hora em que foi baptizado.

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